terça-feira, 20 de novembro de 2007

Deflorando lembranças I

Vale o preço. Quem grita esperando o eco, só ouve a décima parte do que queria. Escutar é ação necessária quando a boca fala pelos cotovelos. Ele entra com a mesma roupa de ontem, na sala de espera. Mas não espera ninguém. Deixa a fatia de tempo caminhar suave, sem responsabilidade para aquele espaço físico. Mexe as pernas de um lado para o outro. Está com as mãos nos bolsos de uma calça jeans surrada, recostado na parede. O som das hélices dos ventiladores avisa com rotina: o mundo gira feito roda. Ele não liga. Ficou inerte desde a última vez que sentiu o rosto sensível do mal.

Desencostou da parede, pegou um copo pequeno e sujo que estava na mesa perto da janela e olhou para o reflexo embaçado. Não era por acaso: estranho seria ver uma imagem límpida de alguém que sequer enxerga a si mesmo quando fecha os olhos. Contudo, ele fechou as janelas. O vento que movimentava as cortinas sóbrias de um lugar solitariamente embriagado se chocava com o desejo eólico do ventilador turbulento. O embaço não foi mais visto. Quis não acender as luzes. Fechou as cortinas e cessou a última esperança de luz. Adeus sujeira, adeus calça jeans, adeus parede. Qualquer descrição agora seria mentirosa, pois nada era visível.

Por outro lado, as sensações cresciam, empurrando a mente para um estágio maior de remorso. Sem culpa, ele lutava em silêncio pelos sons que ainda não havia escutado. “Você é muito importante pra mim”, “te amo”, “volte para os meus braços”. Esqueceu-se de lembrar que era vício ter em mente somente virtudes. Recuou dois passos, tropeçou num tapete indiano antigo e viu que não tinha controle sobre as surpresas, afinal, surpresa é surpresa.

Um pequeno corte no joelho não seria o bastante para deixar seqüelas. Costurou para si a última parte de desejo escondido, não aceitou seu próprio sim como resposta, levantou-se e acendeu as luzes. Desligou o ventilador, ouviu uma voz inexistente que insistia em ficar calada. Era a mente num processo de monólogo. Ele persistia, sem controle, sem ação. Retirou a carteira do bolso traseiro da calça, abriu o velcro e pegou uma foto 3X4. Era a única foto da menina-mulher que jamais havia lhe dito um “oi.”

Uma vez, andando pelas ruas, sentiu a respiração paralisando sua linha de raciocínio. Foi um estalo que ecoou. Não sabia o nome dela, nem quem era de verdade. Mas tinha a certeza de que aquela respiração se repetia, multiplicava na sua cabeça. Era aquilo que ele queria. E querer não é poder. Por que o vento o fazia lembrar? Por que o silêncio se comunicava com ele, como se este fosse a voz ininterrupta dela? Por que matar alguém e roubar a foto 3X4 para saciar um desejo obscuro e pessoal? Não havia corpo, não existiam indícios. Decidiu tomar a decisão mais dolorosa e menos cruel dos últimos dias: rasgou o retrato. Decerto, a imagem era a única fonte de medo e esperança que poderia existir. Não queria admitir que os sons dos gritos e do choro eram as únicas coisas que ele havia dito. Não queria tê-la enforcado, não queria estuprá-la. Mas o fez sem motivo aparente, vilipendiado pelo instinto e egoísmo de ter pra si o que não lhe pertence. Ligou o ventilador outra vez e deixou que o vento espalhasse os pedaços do retrato que ele acabara de rasgar. Os ecos dos ecos pararam. Era o fim.