segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Caso de imprensa/polícia

A história a seguir é uma ficção.

Dois jovens foram encontrados mortos perto de um dos bares mais movimentados do Centro do Rio de Janeiro. Os corpos apresentavam marcas de tiros e facadas na altura da barriga. Rapidamente, a polícia foi chamada. Tão logo, os agentes chegaram e isolaram a área para uma melhor averiguação da perícia técnica. Minutos depois, ao escutarem as conversas da PM pelo rádio, os carros da imprensa apareceram. Conclusão: alguns flashs e bastante algazarra entre curiosos, policiais, fotógrafos, câmeras e jornalistas.

Num emaranhado de dúvidas e questionamentos, uma das brigas mais aparentes era a da “busca pela exclusividade”, pela informação em primeira mão. Os repórteres se posicionavam perto dos corpos, que estavam cobertos com um saco preto, e ensaiavam notícias, se baseando nos breves depoimentos colhidos até então.

- Dois homens foram fuzilados dentro do “Pixinguinha” – disse o primeiro jornalista, direto da cena do crime.

Em nenhum momento, a policia havia dito que os jovens tinham sido mortos no lugar onde foram encontrados. As falas das testemunhas ainda estavam cobertas de contradições. Enquanto isso, o segundo repórter continuava com a lambança feita pelo anterior:
- A noite terminou cedo para dois menores num grande bar do Centro do Rio – afirmou.

Novos carros da imprensa chegavam ao local. O fato já era transmitido em larga escala, com direito a interrupção na programação de alguns canais de TV. Esses acontecimentos acirravam – mais ainda – a competição nada saudável pelo “furo” de reportagem. Com menos de meia hora, todas as rádios e veículos importantes do município divulgavam o crime. No entanto, muitos detalhes haviam sido pouco investigados. Praticamente todas as mídias tratavam as vítimas como criminosos, culpados, inclusive, pela própria morte.

O erro se espalhara. Na tentativa da procura pela “imparcialidade veloz”, o que se viu foram doses e mais doses de conclusões mal feitas. O pensamento rápido evitou o aprofundamento do que, realmente, ocorrera. E ainda faltava o recolhimento das várias versões de uma mesma verdade – sim, isso é possível -, ao passo que o tempo era curto para a transmissão sem falhas, dos fatos. Conseqüência: a discrepância de um veículo para outro era gritante, beirando o absurdo. Ninguém partiu da premissa “só acrescento algo ao leitor se a apuração me acrescentar algo”. Na verdade, o único propósito, numa investida inicial, era ser mais rápido e “objetivo” que o concorrente.

Ao notarem a grande confusão em torno dos corpos, os policiais resolveram aumentar o cordão de isolamento. Um dos agentes responsáveis pela investigação prometera dar esclarecimentos em entrevista coletiva na manhã seguinte. Seria tarde demais. A imprensa não poderia esperar. Logo, logo, o foco sairia dos rapazes assassinados.

O sol levantou e as bancas de jornal, assim como todos os noticiários matutinos da TV, indicavam outras suspeitas. Segundo a maioria deles, os policiais estavam envolvidos no crime. Alguns veículos afirmaram, categoricamente, que a policia estaria dificultando o trabalho da mídia com o aumento da área isolada. Embora a idéia da criação de um complô para desmoralizar a ação policial fosse óbvia, o motivo de tanta especulação da imprensa partira de um telefonema anônimo, uma hora depois de toda a confusão no local do crime. A necessidade pela notícia, pela manchete, sem se preocupar com a responsabilidade que todo jornalista tem como construtor da realidade, se tornara mais importante do que a notícia em si. Fez-se presente à constatação de que a tecnologia – seja da informação ou não – pressiona o projeto de reportagem.

As infinitas possibilidades de desfecho, no caso dos jovens mortos, foram resumidas à pequenas suspeitas e muito bate-boca entre membros da secretaria de segurança pública e dos jornais que levantavam a hipótese de participação da policia nos crimes. Então, a coletiva, há pouco iniciada, foi interrompida com palavras duras e ameaçadoras. Doze minutos a partir da primeira interrupção, o principal responsável pela investigação declarou encerrada a coletiva, após conselho da sua assessoria.

Todos os porquês acerca deste caso só cessaram com o resultado dos exames de balística, da autópsia e do laudo completo dos peritos. Com mais de 20 depoimentos diferentes coletados e três semanas de investigação rigorosa, até por pressão da opinião pública, a polícia concluiu que os jovens foram confundidos com bandidos rivais pelos traficantes da região. Por conta disto, foram brutalmente executados. Nenhuma das vítimas tinha passagem pela polícia. Como a notícia não tinha o mesmo destaque de antes na mídia, assim como não circulava mais nas pautas, porque aquela verdade não era mais interessante, restou à imprensa, na sua arrogância destruidora, destinar minúsculos espaços para a divulgação do resultado das investigações. A minoria dos veículos se retratou com os policiais.

A história contada foi uma ficção, baseada na realidade observada todos os dias. Se os jornalistas, ou pelo menos uma parte deles, tivessem a mesma disposição para buscar respostas que ainda não possuíssem, ou seja, se analisassem e considerassem informações “sem sentido”, a notícia conteria mais formas de embasamento e, decerto, um número menor de difamações, equivocadas. Agora, vá tentar dizer isso para um repórter com o deadline (prazo) estourando.

Ficção?