domingo, 29 de abril de 2007

Trivialidade suburbana

- Por favor, socorram a minha filha! – gritava a mãe desesperada, numa rua movimentada da zona norte do Rio.
Uma criança, aparentando pouco mais de dez anos, cai no chão. Outra vítima nascia através do ventre da rotina carioca. A correria foi generalizada. Enquanto a maioria procurava uma forma de se esquivar (ou se esconder) dos tiros, a mãe, solitária em angústia, cuidava de sua cria.

- Me ajudem pelo amor de Deus! – continuou a suplicar.

Ninguém ouvia. Os policiais estavam do outro lado, duelando com os traficantes; as pessoas mal escutavam os próprios pensamentos e só tinham um objetivo: fugir daquela situação.

- Tudo bem, mamãe. Eu vou ficar boa – sussurrou a menina.

Uma pequena poça de sangue se formava no asfalto irregular. A mãe não podia tirar a filha dali, porque tinha medo de causar uma lesão ainda maior nela. “Não sei se a bala atingiu alguma área frágil”, indagava o instinto maternal. O tempo seguia a sua trajetória e o choro de agonia aumentava. Era possível sentir o cheiro de pólvora da guerra urbana.

- Você é linda, meu rebento. Mamãe vai cuidar de você.

O tiroteio estava diminuindo. Finalmente a policia havia tomado o controle do confronto. Duas das pessoas que correram quando o clima estava tenso, voltaram para ajudar filha e mãe. Os anjos, enfim, conspiravam a favor.

- A ajuda está vindo, minha menina!

Lágrimas misturadas com euforia tomaram conta do momento. Os rapazes chegaram para ajudar. Enquanto a mãe se levantava e pegava o celular de um deles para ligar ao hospital, a menina, que antes tremia, não esboçou mais nenhum movimento. Era tarde demais.

- Abra os olhos, queridinha! – gritou a mãe, batendo forte no rosto da criança.

Não havia pulso. A garotinha estava morta, mergulhada em seu próprio sangue. Todas as possibilidades de uma salvação foram descartadas. Aquele pequeno corpinho não sugaria mais oxigênio. Uma hora e meia após o término da batalha urbana, o coronel envolvido no confronto faz um comunicado à imprensa: “a operação foi um sucesso. Hoje, 13 bandidos foram mortos e apenas um inocente morreu, por bala perdida.
Tudo se resolveu. Do lado da imprensa, a manchete estava garantida; a policia havia cumprindo o seu papel e o “dia estava salvo”, ao passo que outra criança entrava para uma triste estatística.

- A minha menina era inocente, seus desgraçados! – berrou a mãe, ignorando uma premissa interessante e cruel: “as balas perdidas nunca atingem um culpado”.

terça-feira, 24 de abril de 2007

Suicídio do suicídio

Cortei meus pulsos e esperei. Vi o sangue escapando em câmera lenta, sujando o chão encerado do banheiro. Seria a morte dando “boas vindas” devagarzinho? A fraqueza natural começou a se manifestar; o rito de passagem estava prestes a ser cumprido, ao passo que eu iria para um lugar melhor, encontrar Deus, talvez.
Conforme a consciência se esvaía, o desejo de morrer também perdia força. Deus já não era prioridade, apesar Dele estar fixo na minha cabeça, presente em preces. Agora que o meu plano funcionou, eu quero mesmo é voltar no tempo, pegar a navalha que utilizei e me preocupar apenas com a barba por fazer. Sinceramente, nunca pensei na morte como passarela, mas acho que estou muito feio para morrer. Eu deveria ter feito as unhas, aparado os cabelos, depilado um pouco o peito, roubado um beijo da vizinha gostosa... no entanto, a última lembrança que terão de mim é a de um homem – ou menino - desleixado, o qual não tinha outra opção a não ser a morte mesmo. Não quero que pensem isto. Eu escreveria um bilhete explicando tudinho, porém, só fui me dar conta disto neste instante.
O pior de tudo, é que não consigo mais me mover, estou com poucos reflexos. Se eu pudesse, pegaria o telefone e ligaria para alguém vir me ajudar a fazer o sangue parar de jorrar. Será que meus olhos se fecharão automaticamente ou eles ficarão abertos? Sei lá. Os meus p-e-n-s-a-m-e-n-t-o-s e-s-t-ã-o c-a-d-a v-e-z m-a-i-s l-e-n-t-o-s e c-u-r-t-o-s, enquanto sou atingido pelo arrependimento. Até as coisas estão rimando na minha mente. Maldita a hora que fui cortar os pulsos! Seria bem mais fácil se eu tivesse dado um tiro na cabeça ou me atirado de um precipício. Nunca imaginei que a possibilidade de pensar durante os momentos que antecedem a morte, fosse me fazer dar valor a vida. Ou pior: dar valor ao que eu ainda não tive a oportunidade de viver.

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Viúva negra

Ela serpenteia o corpo da pobre vítima apaixonada. Usa-o ao seu bel prazer, deixando penetra-se pelo instrumento do macho. O sexo é bom, rápido e frágil. Gigante em sua teia de agonia e satisfações recatadas, nossa viúva respinga um pouco de seu suco: ácido, quente e mortal.
Terminou. Depois de ser “comida” pelo macho, o golpe final pôde ser dado:


- Agora que teu sêmen é meu, faço tua a minha morte.

E ele morre feliz, em estado de êxtase, cumprindo a profecia numa transa tão maravilhosa quanto finita. Breve, feito a vida de qualquer homem, e suave como o momento que sucede a gozada. Acaba-se o orgasmo e sobra marasmo.

terça-feira, 17 de abril de 2007

Minha portuguesa

Venha com seu sotaque
Me ataque, me ataque...

Não me venha com artigos
Seus castigos doem
O que digo é finito
Suas reações não:
Porque grito e finjo por você

Seus substantivos não nomeiam
Tampouco incendeiam coisas
São inexistentes em forma
São inexistentes em conteúdo
Puras sílabas mal separadas

Explique-me suas rimas
Sempre terminam com “dor”
Mas não vou cometer o mesmo erro
Você imitou Judas
E eu não fui traidor, conspirador...

Aqueles verbos são cruéis
Pois estão conjugados da pior maneira
Nem o seu “ter”, tem
Nem o seu “ser”, é
Comigo e com ninguém


Do seu sotaque eu me defendo
Correndo, correndo...

sábado, 14 de abril de 2007

Balanço e gravidade

Empurra o BALANÇO da criança na praça. Ela vai e volta, SORRINDO e pedindo mais. A gente repete o movimento, levando Aninha (a criança) outra vez ao céu, enquanto a GRAVIDADE a trás de volta para a terra. É um pêndulo que termina o ciclo sozinho. Depois de um tempo, a criança não precisa mais de ajuda, ela já consegue buscar IMPULSO SOZINHA - voa e pousa sem que ninguém a impulsione. A companhia é apenas aquele velho balanço, CONSTRUÍDO PELA PREFEITURA, numa época em que a eleição se aproximava.

O outono passou e mais uma eleição estaria por vir. A falta de emprego, a comida que não chegava à mesa: tal miséria estava disposta em não pedir dispensa. No vai e vem da vida, a própria vida de Samuel resolveu servir de BALANÇO. Ele se equilibrava da maneira que podia. Tentou durante muito tempo pedir ajuda, um emprego, um curso. Mas os governantes não estavam atentos para a GRAVIDADE do problema. Aliás, em todos os sentidos, gravidade acaba sendo tudo aquilo que nos empurra para baixo, que nos diminui em nossa insignificância.
Cansado de tentar se BALANÇAR SOZINHO, Samuel SORRIU da situação, arranjou uma arma no morro e foi viver de assaltos. Durante alguns meses, a nova profissão deu certo. Foram cinco assaltos realizados com sucesso. No sexto, resolveram parar o balanço de Samuel. Próximo a uma praça, enquanto praticava o crime, o nosso personagem foi surpreendido por policiais. O tiroteio era inevitável e Samuel teve o seu caminho selado: quatro tiros (um na cabeça, dois na altura do peito e um na mão esquerda). Mesmo assim, muitas balas não o atingiram, assim como nenhum de seus tiros havia atingido os policiais. As munições ficaram a mercê da gravidade e, uma delas – que tinha passado de raspão quando Samuel ainda estava vivo – achou o seu destino num BALANÇO CONSTRUÍDO PELA PREFEITUTA, o qual Aninha brincava.

No dia seguinte, para duas famílias, não havia mais balanços, mais sorrisos, mais fome. Apenas a gravidade permanecia intacta, puxando para baixo todas as coisas e pessoas que resolvessem ir contra a sua lei.

terça-feira, 3 de abril de 2007

Eu e Ele?

Eu: Quem é você?
Ele: Eu sou o “Ele”, né?
Eu: Por que respondeu interrogativamente?
Ele: Você não acabou de fazer o mesmo?
Eu: ...?
Ele: Continua fazendo, apesar de não ter falado nada.
Eu: Até que enfim uma afirmação!
Ele: ...?
Eu: Ih... vai começar tudo de novo?
Ele: Não.
Eu: Vai ficar monossilábico?
Ele: Não.
Eu: Sei...
Ele: Você é gay?
Eu: Quem? Eu?!?
Ele: É.
Eu: Não! Por quê? Você é?
Ele: Também não.
Eu: Ah bom...
Ele: Por que “ah bom”...? Você é homofóbico?
Eu: Quê?!?!
Ele: Você tem alguma coisa contra os gays?
Eu: Não, desde que haja um respeito.
Ele: Mas eles teriam motivos para não respeitá-lo?
Eu: ... (fez sinal de negativo com a cabeça)
Ele: Então...
Eu: Então o quê?
Ele: Deixa pra lá.
Eu: Você é estranho, muito estranho.
Ele: Coincidência...
Eu: Por quê?
Ele: Porque penso o mesmo sobre você.
Eu: Pelo menos temos algo em comum.
Ele: Ah é!
Eu: Mas tudo isso poderia ter sido evitado se você tivesse respondido a primeira pergunta do nosso diálogo.
Ele: Pô, eu respondi.
Eu: “Eu”?
Ele: Você não. Eu!
Eu: Caraca... que conversa de maluco!
Ele: Deixe-me explicar: o meu nome é “Ele”, sacou? Ou seja, eu sou o “Ele”.
Eu: Então, se você é o “Ele”, eu sou “Eu”.
Ele: Capitou a minha mensagem.
Eu: Peraí: se o seu eu é Ele, o meu ele não deveria ser “Eu”?
Ele: ...?
Eu: Esquece!
Ele: Acho que foi por isso que inventaram os nomes próprios.

- Amor, saia já da frente do espelho! – esbravejou minha mulher.

Depois das reformas da linguagem, pronomes pessoais e tantos outros elementos, viveram felizes para sempre.