quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Gravando

Um, dois, três e... AÇÃO! Meus olhos são câmeras de vídeo vigilantes, aquém daquilo que se observa. Não possuo controle algum sobre qualquer “take”, corte ou continuação de uma cena roteirizada pela vida. No entanto, o controle remoto está onde eu possa vê-lo. O que aparece são seus passos, meus passos, todos os passos. Se após um assalto o carro o leva, arrastando seu crânio pelo asfalto, eu me arrasto contigo; sigo como espectador, empolgado e lastimando cada movimento da cena, seja ela velha ou nova. Igual aos bandidos, fico surdo, não te ouço gritar, pedir socorro. Perco a minha infância, abraçando o menino de longe; e a tal esperança transforma-se em carne viva, da mesma forma que o corpo de João Hélio e de tantos outros... Mas acreditem, eu continuo vendo.
A audiência solitária resumi-se em audiências solitárias. Milhões de células multiplicam-se. De repente, o “um” vira “dois”, o “dois” vira “quatro” e o processo continua. Cada qual tem alguém do lado, assistindo e sendo assistido. Quando uma bala perdida encontra a cabeça de um rapaz que fora a procura de um emprego, além da morte, vejo o acaso. Aliás, o acaso nunca foi tão repetitivo como agora.
Nas estatísticas, me vejo. Noto também mortos-vivos, vivos-mortos, construindo alternativas para tais números.

....Um momento, vou limpar as lentes...

Pronto. Estou de volta. Um, dois, três e... AÇÃO! Consigo partir para outro capítulo: muitas pessoas revezando-se, com raiva do mundo. Se elas fazem isso, meus olhos também o fazem. Sou voluntário do meu desejo e, principalmente, dos desejos deles. Porém, neste instante, eu tenho o poder de dar “Stop”. E, honestamente, não quero fazer isso.

Continuo remontando a realidade com visões alheias. Paradoxalmente, faço parte das visões. Eu sou o “alheio” para eles. Sendo assim, eles remontam a realidade através de minhas observações. E de novo, e de novo, e de novo. Recorto um diálogo aqui, alguns efeitos especiais na cena dali, uma musiquinha para dar clima e mais luzes. Se eu quiser, consigo ser diretor deste espetáculo. Todavia, dá muito trabalho, embora volta e meia eu apareça como figurante. Independente disto, tenho convicção de que o meu papel não pode ser interpretado por terceiros. E eu, na mais estranha janela social-virtual-real, me deixo ser filmado, enquanto estou filmando.

Ás vezes, chego tão perto dos acontecimentos que, inevitavelmente, respinga sangue nas lentes – e/ou lágrimas. Por isso, tenho sempre à mão uma flanela para tirar essas tipo de dejeto do visor. Fazer o quê, né? É o ócio do ofício...

Hum... acho que esse depoimento não ficou bom. Vamos aguardar um pouco. Fiquem todos em seus lugares, esperem o momento certo e...
- Chefe, quando será o momento certo? – meus olhos perguntaram para o meu cérebro.
Diante da interrupção, o cérebro respondeu:
- Ligue a câmera, abra-se e espere. O nosso momento certo, será o momento errado dos outros.
Fez-se silencio no estúdio e, poucos minutos depois, um menino de 12 anos mata a avó, a facadas. Eu pude ver o reflexo do meu rosto naquela faca; me preparei para cada segundo de drama e, como já faço há muito tempo, não chorei.
- O senhor tinha razão, chefe. Foi só esperar que aconteceu. – Disse "os olhos".
- Não entendo a sua surpresa. Isso é o que mais você tem feito nos últimos tempos. Será que ainda não percebeu que essa fórmula funciona?
- Chefinho, eu sou apenas “os olhos”. Esqueceu que é o senhor quem deve pensar por mim?

sábado, 10 de fevereiro de 2007

Orquestra urbana

Afinado, o poeta do caos diz:
"O Rio de Janeiro continua lindo; o Rio de Janeiro continua sendo..."

A sinfonia começa a girar por nossos ouvidos. Um belo som de choro feliz misturado com a risada de desespero. O maestro não está no centro do palco, nem nos cantos. Por ora, se pode observá-lo nos pensamentos, nos sonhos, na fé. Seus movimentos são sentidos e, assim, a orquestra ainda mantém um pouco de afinação. Uma sonata, um lá menor dramático. Sem um padrão definido, todos desafinam. O toque não é mais o mesmo, as cordas do violão se enroscam entre os dedos confusos. Eles querem um tom maior, mas não conhecem o dó-ré-mi.
Nos confins das atitudes impensadas, o público assiste atônito, inerte. Mais choros e vãos sentimentos são encontrados perdidos pela platéia. As aspirações desconectadas batem de frente com a escuridão da falta do ritmo. Todos continuam marchando na direção obscura do refrão sem voz. Os gritos agridem aqueles que não sabem tocar nenhum instrumento. Ambos os lados estão encurralados. Aquela boa música se perde em ouvidos que não estão presentes. A bateria de chumbo reencontra o rumo do céu ou do seu lugar. Ora o maestro é amador, ora é profissional. No fim, todos querem uma boa sinfonia, entretanto, ninguém se propõe a tocar de acordo com as regras.

O pai do último filho assassinado, desafinando, responde:
"...Vida louca, vida. Vida breve; já que eu não posso te levar, quero que você me leve..."