Gravando


A audiência solitária resumi-se em audiências solitárias. Milhões de células multiplicam-se. De repente, o “um” vira “dois”, o “dois” vira “quatro” e o processo continua. Cada qual tem alguém do lado, assistindo e sendo assistido. Quando uma bala perdida encontra a cabeça de um rapaz que fora a procura de um emprego, além da morte, vejo o acaso. Aliás, o acaso nunca foi tão repetitivo como agora.
Nas estatísticas, me vejo. Noto também mortos-vivos, vivos-mortos, construindo alternativas para tais números.
....Um momento, vou limpar as lentes...
Pronto. Estou de volta. Um, dois, três e... AÇÃO! Consigo partir para outro capítulo: muitas pessoas revezando-se, com raiva do mundo. Se elas fazem isso, meus olhos também o fazem. Sou voluntário do meu desejo e, principalmente, dos desejos deles. Porém, neste instante, eu tenho o poder de dar “Stop”. E, honestamente, não quero fazer isso.
Continuo remontando a realidade com visões alheias. Paradoxalmente, faço parte das vi
sões. Eu sou o “alheio” para eles. Sendo assim, eles remontam a realidade através de minhas observações. E de novo, e de novo, e de novo. Recorto um diálogo aqui, alguns efeitos especiais na cena dali, uma musiquinha para dar clima e mais luzes. Se eu quiser, consigo ser diretor deste espetáculo. Todavia, dá muito trabalho, embora volta e meia eu apareça como figurante. Independente disto, tenho convicção de que o meu papel não pode ser interpretado por terceiros. E eu, na mais estranha janela social-virtual-real, me deixo ser filmado, enquanto estou filmando.

Ás vezes, chego tão perto dos acontecimentos que, inevitavelmente, respinga sangue nas lentes – e/ou lágrimas. Por isso, tenho sempre à mão uma flanela para tirar essas tipo de dejeto do visor. Fazer o quê, né? É o ócio do ofício...
Hum... acho que esse depoimento não ficou bom. Vamos aguardar um pouco. Fiquem todos em seus lugares, esperem o momento certo e...
- Chefe, quando será o momento certo? – meus olhos perguntaram para o meu cérebro.
Diante da interrupção, o cérebro respondeu:
- Ligue a câmera, abra-se e espere. O nosso momento certo, será o momento errado dos outros.
Fez-se silencio no estúdio e, poucos minutos depois, um menino de 12 anos mata a avó, a facadas. Eu pude ver o reflexo do meu rosto naquela faca; me preparei para cada segundo de drama e, como já faço há muito tempo, não chorei.
- O senhor tinha razão, chefe. Foi só esperar que aconteceu. – Disse "os olhos".
- Não entendo a sua surpresa. Isso é o que mais você tem feito nos últimos tempos. Será que ainda não percebeu que essa fórmula funciona?
- Chefinho, eu sou apenas “os olhos”. Esqueceu que é o senhor quem deve pensar por mim?