Viagem
“A esperança é a última que morre...”
I – Decolagem
Ele foi para a cidade grande em busca de um futuro melhor. Deixou dois filhos pequenos e a esposa num casebre de madeira e palha, imaginando que tudo se transformaria com o tempo. Pois é, seu Genésio Oliveira tinha razão. Em pouco mais de três meses fora, arranjou um emprego – depois de pedir muita esmola e carona pelas ruas de São Paulo. Ser pedreiro consumia 14 horas, de bastante suor, marteladas e misturas de concreto. Era notório o sorriso na face maltratada pelas intempéries intermitentes, apesar das longas e duríssimas jornadas de trabalho. Algo em torno de dois salários mínimos na conta bancária se materializava em pão e roupas para os seus familiares.
II – Vôo
Completou dois anos trabalhando: se tornou mestre de obras, conhecido por todos os engenheiros de uma grande empreiteira do Centro de São Paulo. As 14 horas de trabalho caíram mais do que a metade, e seu salário, seguindo na contramão, triplicou. Continuava mandando certa quantia em dinheiro para a família, todo fim de mês. Tinha o sonho de ver os filhos como doutores. Sentia saudades dos carinhos e noites de amor ao lado da esposa, mas não podia se desconcentrar de sua meta. Telefonava vez ou outra, no intuito de alimentar o espírito esfomeado pela ausência dos entes queridos. Chorava silenciosamente após as orações. Os pesadelos o atormentavam ao dormir: eram visualizações de como a vida seria pior, caso continuasse morando na cidade de onde veio.
III – Acima das nuvens
Mais dois anos haviam se passado. Faltava somente uma semana para terminar todo o ciclo de espera. Joaquim, o filho mais novo, César, o primogênito e Neli, a esposa, estavam preparando as malas e se despedindo da distância de Genésio. Parte do dinheiro guardado por ele – nesse meio tempo -, juntamente com o financiamento oferecido pela Caixa Econômica Federal, possibilitaram a compra de uma casa simples, porém confortável, próximo ao centro velho de Sampa. A luta e o sacrifício estavam prestes a serem justificados. Ele estava certo de que, no passado, tinha dado um tiro no escuro e, com perseverança, conseguira acertar o alvo quatro anos depois.
IV – Última escala
A maior responsabilidade de sua vida profissional era erguer um prédio comercial perto do aeroporto mais movimentado da cidade. Restavam alguns pequenos retoques, coisa pouca. A obra parecia em sincronia com o tempo de chegada da família. Dos 36 funcionários envolvidos no projeto, 33 chamavam Genésio de senhor e os outros três o chamavam pelo nome, porque eram seus respectivos chefes. O respeito havia se consolidado. Amanhã a família traria toda felicidade adormecida na distancia que os separavam do pai e esposo. Genésio já não conseguia dormir, haja visto que a ansiedade o consumia por completo. Imaginava os abraços e beijos de reencontro. Os pensamentos eram certeiros: “quanto mais espero, menos vou ter que esperar”, filosofava solitariamente.
V – Pouso/aterrissagem
- Nossa, olha quanto prédio, mamãe! – apontava para a cidade de São Paulo – ainda no avião -, o filho mais novo de Genésio. Ele conferia pela janela tudo o que a televisão mostrava em escala menor. O menino ficara impressionado com o tamanho das construções, da paisagem de concreto. O nervosismo tomava conta do momento, porque, logo-logo, todos estariam juntos de novo.
- Será que o papai vai gostar do meu presente? – perguntou Joaquim, lembrando-se da ampliação que havia feito, manuscritamente, de uma foto que a família tirara há muitos natais. Nesse tempo, o menino descobriu seu talento com o lápis de cor e esperava mostrar tudo o que aprendera ao pai. Enquanto isso, Neli chorava de alegria, pois os minutos que a separavam do marido se esgotavam gradativamente. Todos estavam com o pensamento em sintonia.
VI – Reverso(r)
Inerente a expectativa geral, a chuva deu o ar da graça. O asfalto molhado e um acidente – corriqueiro por sinal -, envolvendo caminhões, fizeram do trânsito um inferno ainda maior do que de costume. O vôo estava atrasado, em conseqüência do caos aéreo. Observando o painel informativo no saguão do aeroporto, Genésio notou que demoraria um pouco mais do que o previsto para reencontrar com os familiares. Resolveu então buscar o presente que comprara para dar aos filhos assim que chegassem à nova casa. A antecipação era a válvula de escape para as batidas aceleradas do coração. Tal surpresa estava no armário do canteiro de obras. Seguiu até o “quase” prédio que trabalhava, ao lado da pista de pouso; esbarrou com dois amigos – e não pôde parar por motivos óbvios, já que não queria se atrasar tanto quanto o avião -, pegou o presente e deixou algumas palavras anexadas à embalagem: “essa câmera digital é para termos mais momentos felizes registrados. Ela fará que, todos os nossos dias, a partir de hoje, sejam eternos não apenas nas lembranças.”
VII – Boom!
Trem de pouso abaixado e velocidade constante. O solo da pista era tocado pelo transporte que trazia a felicidade de um retorno, do elo mais forte que faltava à vida de Genésio. Outros elos – apesar de não pertencerem a mesma corrente - também estavam na aeronave, esperando, talvez, pelo abraço de uma mãe que não viam há tempos, de uma oportunidade de negócios, do aperto de mão dos amigos, da viagem para conhecer o desconhecido. O piloto freou a aeronave, mas houve algo de errado. Embora estivesse na pista, o veiculo beirava os 200km/h. César percebera que os prédios estavam maiores e mais próximos do que antes. Com o presente nas mãos, Genésio retomaria sua trajetória ao aeroporto. Pôs os pés para fora do canteiro e...
- Feche a cortina, meu filho! – Neli repreendeu César, porque tinha medo que ele sentisse enjôo devido à forma que a paisagem cortava o seu campo de visão.
- Tudo bem, mamãe – respondeu o menino.
- Acho que chegamos – dizia Neli, enquanto apertava as mãos no encosto do acento. O avião estava em Terra, mas a cabeça dela continuava nas nuvens: “hoje é o dia mais... – não deu nem tempo das aspas se fecharem.
Genésio preparava-se para atravessar a rua e seguir novamente em direção ao aeroporto. O presente que ele daria aos seus filhos era protegido debaixo do braço esquerdo, por causa da forte chuva na cidade. Um ruído muito alto de turbina de avião vinha dos fundos do prédio. Genésio pensou em olhar o que estava acontecendo, até que ele se tornou o fato, a estatística, tal qual outra centena de pessoas. Não ouve dor, não houve tempo pra nada. Um silêncio e depois boom!
Jornal Nacional – Hoje aconteceu o maior acidente da história do país. Cerca de 200 pessoas morreram carbonizadas...
...bola de fogo... pista escorregadia... falta de investimentos... FATALidade...?
“... A esperança é a última que morre, porque quem morre primeiro é você.”
O maior texto da história deste blog, só poderia ser sobre a maior tragédia aérea da história do Brasil
43 comentários:
Estou estática...Diante da verdade tão crua em que vidas esvaem-se na velocidade do vento! Cruel, mas...fatal!
Beijo
Solidária com o povo brasileiro perante essa tragédia!********
É, de perto, eu pude conferir o quanto esse desatre afetou as pessoas...
Ainda com lágrimas a escorrer. Você me emocionou demais, já havia chorado muito com as reportagens na TV, mas este seu relato viu.
E ainda há quem trate desta notícia com sorrisos nos lábios, como o nosso querido presidente. Estamos de luto e ele não percebe.
Obrigada pela visita, vou te linkar lá em casa. Muito lindo seu cantinho.
Beijos e bom findi semana.
A sua escrita emocionou-me tanto, tanto... estou com lágrimas no rosto.
Foi penoso ver as imagens da TV e agora revivê-las com esta história que poderá ser bem verdade em alguma daquelas famílias fez-me chorar.
Estou muito solidária com todo o povo brasileiro.
beijos de portugal
É sempre muito penoso,belo texto que gostei muito de ler..
Meu doce beijo e meu rastooooooooo
Texto lindo sobre uma realidade triste. Mas é preciso que cutuque a ferida, que se escreva, que se fale, para que, mais uma vez, não caia no esquecimento uma grande tragédia.
Beijos.
Muito obrigada pela visita e pelo comentário. Acho sim muito importante divulgar a cultura no nosso país.
Gosto sempre de colocar também alguns eventos que são grátis, pois assim todos têm a oportunidade de se divertir.
Quanto ao seu texto, é a realidade estampada, né...dura, triste, pavorosa.
Essa tragédia abalou a todos nós.
Grande beijo
Só você para escrever um texto desses... só você mesmo.
Sem palavras perante uma tragédia que dói por dentro...
Parabéns!!
Bonito post no sentido de ser humano e não uma fantasia.
Meu coração chora com o povo brasileiro a perca das vidas
beijos em seu coração
whispers
extremamente marcante...
e o mais impressionante é que é tudo real!
abraço!
tem texto novo lá!
é triste demais!
ontem eu passei em frente! é impressionante a dor que se sente!
=***
nossa, estou pasma, que narração de uma partizinha que estava por trás deste desastre.Me fez pensar mais em outros Genésio.Parabéns pelo texto tão bem escrito.Desculpe o sumiço,agora voltei de vez.Um beijo e linda semana!!!
Ainda hoje não consigo ver nada a esse respeito sem um aperto no coração. Sem palavras.
Boa semana! Fique com Deus!
Bjs
Seria magnífico acabar de ler e pensar "Ah, é apenas um texto de ficção", mas a verdade nua e crua, a certeza de que centenas de vidas foram, de facto, desfeitas nesse instante, não deixa ninguém indiferente.
adorei o texto.
eu chorei mto vendo os noticiarios, mto.
demais.
=*******
:ó( Triste é pensar que esta não é uma obra de ficção.
Obrigada pelo comentário no Oncotô. Adorei a sua visita.
Volte sempre?
Beijos.. ótimo dia
muitos sonhos, muitas vidas, muitos reencontros foram interrompidos... tristeza
beijo
Sabia que tinha deixado de fazer refêrencia a um dos blogs de texto que mais gosto ( o seu)...vai ter um post especial depois ;)
Adorei esse texto!
Obrigada pelas palavras de força, vc tem toda razão!
Excelente dia p vc!
Do modo que você escreve e descreve cada detalhe, cada sentimento, cada dor de saudade... Daria pra dizer que você era o próprio Genésio, Neli e filhos.
Belíssimo.
Você esteve em meu blog "quase" desativado, Os Uivos da Loba na weblogger, e por isso não vim agradecer a sua passagem e tampouco referendar a sua criatividade emocional quando nos conta, com riqueza de detalhes, alguns dos fatos envolvendo a tragédia da TAM. LMENTÁVEL...
O que me deixa profundamente triste é o fato da imprensa maquiada, comprada, exibir na revista veja que o piloto foi o responsável, quando até mesmo o mais humilde e simplório brasileiro sabe que o governo foi inoperante, engessado e incompetente na gestão da causa; e se o laudo apontar falha humana como causa do acidente, - o que considero pouco provável - esse povo de paletó continuará nos gabinetes ganhando dinheiro do erário sem produzir o mínimo, sem assumir falhas e culpas.
Há ainda muito o que dizer, sobretudo o que lamentar sobre esse acidente, mas deixo aqui as minhas orações para os que se foram naquele voo. Na verdade, serão para nós verdadeiros heróis e heroínas, pois suas mortes permitiram que zumbis fossem ressuscitados.
Muito interessante o seu blog.
BeijUivoooooooooossss da Loba
eu acredito que é isso. é preciso ver a historia dessas pessoas como seres humanos indivualizados que eles são. e não como um conjunto de coisas ou sei já o que. são historias, sonhos e tantas outras coisas virando cinzas e eles só querem saber de encontrar um culpado.
Oieeee, fiquei pasma quando li esse texto.
Dá até vontade de chorar com a realidade desse texto...
Adorei mesmo.
Bom, eu espero que sempre coloque textos assim, é super.
Bjks...
*~*
Triste. O texto e a realidade. Triste.
Bjs meus
retribuindo sua visita...
parece que "vi" seu texto acontecendo aqui... na minha frente.
beijocasssssssss re espero mais vezes e voltarei mais vezes!
O.o
Um dos melhores textos que já li sobre a pioir tragédia aérea do País. Indignação? Não, Revolta! com o descaso das autoridades ante ao sofrimento de milhares de famílias que, assim como Genésio, esperavam entes queridos para o reencontro!
Texto Maravilhoso.
Beijos.
Digno de Lágrimas.
Paulo,
Uma pena ter que ler palavras tão belas e que ao mesmo tempo traduzem uma triste realidade. Adoraria que o maior texto do A verdade nua não passasse de um conto. Tamanha tristeza, principalmente para as famílias e também para todos os brasileiros. A segurança nesse país cada vez mais voa para longe daqui.
Confesso que não encontro as palavras...fui profundamente tocada pelo seu texto.
vidas interrompidas...
triste isso aqui
apesar d triste, gostei de te ler...
obrigada pela tua visita
beijinhos
e o mais legal, � que levantaram hip�teses de que nao foi problema tecnico, mas sim falha humana.
Hoje na faculdade, tive que escrever um texto para r�dio, sobre os problemas a�reos. Cada vez mais minha vontade de entrar num aviao, est� se acabando.
o texto � grande, porem gostoso de ler, apesar de que o fato foi horrendo.
qUANtas pessoas mais, passaram por esta mesma tristeza.
um beijo
Obrigada pela visita.
vou add!
Adorei o texto!!!
Pena que o motivo foi trágico.
n sei até que ponto a esperança não morre antes de susto...
beijos incomuns da ci
Passando pra deixar um beijinho e lhe desejar bom fim de semana! Fique com Deus! Bjs
to até sem palavras.
tu escreveu um texto tão bonito, pra algo que dói só de imaginar, e mesmo assim a dor que a gente sente não é nada comparado a dos outros.
repito o que eu já disse milhões de vezes nas ultimas semanas: quantos mais desses o povo tem que ver pra mudar algo nesse país?
muito bom teu blog. beijo moço ;*
Cara?Putz...sem palavras!!!1 minuto de silêncio é muito para essas famílias que perderam seus entes queridos...e que correm atr´´as de justiça agora... 1 minuto é muito tempo para se perder!!!!
Triste, muito triste tudo isso...
Passando p/te perguntar pq não foi mais me visitar, estou com saudades.Te desejo um ótimo fim de semana ao lado dos seus.bjos
realmente muito triste...
uma das cenas mais chocantes da minha vida foi a da reação de uma mãe ao confirmar que os 2 filhos estavam no avião...
...
bjksss
Excelente!!!
Não consigo conter minha emoção, pois, não sei o que faria se fosse minha mãe que estivesse la.
Você sabe que mammy esta em Sampa e bem ali pertinho.
Estou estatica.
Meus parabesn como sempre.
A Rede Globo, precisa de você! Rsrsrsrsrs....
Beijos...
Triste!
:(
Paulo Fernando,
Tenho um filho que é só uns anos mais velho que você.... Como se já não bastasse a comoção que nos causou tamanha tragédia, sinto uma enorme pena em ver que meninos como vocês pensam assim: “... A esperança é a última que morre, porque quem morre primeiro é você.”
Obrigada pela visita, querido
Muito bom o seu texto.
Um beijo
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