sábado, 21 de outubro de 2006

Sem Z


Na matemática, Z representa o conjunto dos números inteiros.

Aqueles malditos homens, inventores do alfabeto que conhecemos hoje, foram muito charlatões ao colocarem um sentido ao símbolo “Z”. Ser o ultimo, em muitos casos, não é ruim. Entretanto, quando estamos falando de toda uma possibilidade de linguagens e conquistas, acredito, sem nenhum medo, que a letra em questão veio para não ficar. Vejam os exemplos claros: paZ, xadreZ, Zarabatana, Zaga, Zona, ZeZé di Camargo... enfim, todas essas palavras não caíram no gosto do povo, exceto Zona. Quem sabe não poderíamos construir um mundo melhor para os nossos filhos se a letra “Z” fosse definitivamente abolida do nosso dia-a-dia? Tenho plena convicção do que estou falando, porque, pouco a pouco, a minha teoria se confirma. Normalmente, algumas das principais palavras que se iniciam com a letra “Z” são invariavelmente substituídas por seus sinônimos. Observem:

Opção descartada: Você é muito Zureta da cabeça.
Opção utiliZada: Você é muito maluco/doido da cabeça.

Opção descartada: Estou Zangado contigo.
Opção utiliZada: Estou irritado/puto contigo.

Opção descartada: Por que você está Zombando dele?
Opção utiliZada: Por que você está caçoando/Zoando dele?

Opção descartada: Vamos Zarpar, marujos!
Opção utiliZada: Vamos levantar âncora, marujos!

Os exemplos existem aos montes. Pensem bem: um texto não perde a sua essência quando se tira a letra “Z” dele. Agora, vá tirar a letra “R” ou “S”... PutZ, o seu texto morre, ou fica cambaleando a ponto de perder a respiração. Uma veZ, alguém me disse que o melhor texto já escrito, foi aquele que utiliZou todas as letras em poucas palavras. Concordo. Porém, a nossa vida não seria mais fácil se ao invés de 23 letras o alfabeto possuísse apenas 22? Teríamos uma oportunidade, um pouco maior, de inserirmos todas as letras numa só crônica, ou numa só poesia. Mas deixo de pensar nessa alternativa quando, relendo o que ouvi, descubro que ela me foi dita de forma figurada. Voltando a discussão inicial, não me vem a mente, nenhuma palavra, primordial para a existência humana, que possua o “Z” como seu alicerce. Até mesmo no sexo, não existe nada que remeta a essa tal letra, senão goZa essa vale a pena ser lembrada. Poxa, se o nosso vocabulário fosse uma democracia, essas coisas não aconteceriam. Então – por que não? – acabarmos de veZ com essa maldita invenção do homem.

Z é a vigésima terceira letra do nosso alfabeto

Zumbi, Zé, Zum Zum, Zuzir, Zunido, Zumbido, Zacariasesse ultimo já faleceu.

Essas palavras fariam falta ao nosso vocabulário? Nenhuma, vos digo! O único porém, neste caso, seria o desaparecimento de alguns jogadores de futebol, assim como o sumiço de apelidos infames: Zé Maria, Zé Elias, Zé Roberto, Zé Luís e... Zé ninguém, Zé rolha, Zé povinho... São inúmeras as razões para eu e você virarmos as costas para essa letra que deturpa toda a volúpia de uma gente que quer falar mais, ganhar mais, sorrir mais. Aí, diante de toda essa briga, aparentemente inútil, me vem aquele velho principio que rege o mundo. Uns chamam de ação e reação. Outros de bem e mal. Por veZes, ouvimos, céu e terra. Porém tem gente que prefere o fogo e a água. Tendo a dualidade como opositora à meus argumentos sobre a extinção da letra “Z”, em silêncio, me rendo. Pelo que parece, a oposição que rege a minha vida, é mais simples e, ao mesmo tempo, ingrata comigo mesmo: Enquanto uns são “+” e “-“ ou amor e ódio, descubro, para a agonia de meu texto, que sou “A” e “Z”... e, embora tente, não posso mudar isso.

sexta-feira, 6 de outubro de 2006

Vida louca

Pelo rádio, os cânticos dos Racionais MC´s ressoam dentro de um pequeno barraco, numa favela qualquer do Rio de Janeiro: "...Tudo, tudo, tudo vai, tudo é fase irmão, logo mais vamos arrebentar no mundão. De cordão de elite 18k...". E continua: "... pobre é o diabo e eu odeio ostentação. Pode rir, ri, mas não desacredita não. É só questão de tempo o fim do sofrimento, um brinde pros guerreiros..."

- Tranque a porta, porque o bagulho tá doido hoje.
- Tudo bem, meu filho, mas venha jantar antes de sair.
No dia-a-dia da guerra urbana, a fome não é saciada com comida. Os alimentos na geladeira são cadáveres de facções rivais. O pãozinho quente com manteiga, é o corpo ensangüentado do PM que tentou prender o dono da boca-de-fumo. Aqui, a fome é tratada no laço, sem direito a sobremesa. Ninguém cospe no prato que comeu, caso contrário, comerá o pão que o diabo amassou.
No calcanhar do movimento alternativo, o comércio se fortalece:
- Pó de dez, maconha de todos os preços!
- Dá um aí, chefia.
Quando a boca fatura demais, o olho grande dos rivais e da polícia aumenta. São dias e noites flertando com a morte, pagando o demônio a prazo. Às vezes, o povo fica encurralado diante dos tiroteios. Tem gente que até estranha quando a bala não come.
Tipo, como um soldado do morro, busco meu espaço - quero chegar a ser gerente! Mas o caminho é cheio de espinhos venenosos, além de cheirar a marola. A minha fé, sustenta a esperança de um dia chegar lá no topo, haja visto que essas coisas não acontecem de uma hora para a outra. Por falar em mudança, já posso ouvir uns pipocos. Logo, logo, serei chamado pra ajudar na contenção. Tá ligado que eu não posso deixar de dar uma moral, né? Mas antes, vou seguir o conselho de minha velha e jantarei. Um homem não pode ir para a guerra sem nada na barriga. Como dizem os sabidos: "saco vazio não pára em pé".
- Me passa o feijão, mãe.

Ainda no mesmo barraco, a música dos Racionais já está próxima do fim: "... O caminho da feliciadade ainda existe: é uma trilha estreita em meio a selva triste...". O refrão, embora perdido no inconsciente, reflete a verdade escondida através dos números e notícias superficiais de jornais: "... Meus guerreiros de fé, quero ouvir, quero ouvir: ´programado pra morrer nós é, certo é, certo é, dê no que der´..."

- Mãe, tô saindo agora. Não esqueça de fazer o que lhe pedi.
- Tá bom meu filho. Toma cuidado e vá com Deus.
- Obrigado, mãe. Se tudo correr bem, estarei aqui antes do amanhcer. Ah, desligue o rádio, coroa. Tchau.

Assim que o filho saiu, a mãe trancou a porta e foi abaixando lentamente o volume da música: "... porque o guerreiro de fé nunca gela, não agrada o injusto e não amarela. O Rei dos reis foi traído e sangrou nessa terra, mas morrer como um homem é o prêmio da guerra. Mas ó, conforme for, se precisar afogar no próprio sangue, assim será! Nosso espírito é imortal, sangue do meu sangue. Entre o corte da espada e o perfume da rosa, sem menção honrosa, sem massagem. A vida é louca, nêgo, e nela eu tô de passagem...".
A música acabou e tentando não pensar no que ouviu, a mãe desligou o rádio e foi orar.